Lugar de Transfobia é na escola?
糵quer avançar o debate com criação doNúcleo de Igualdade de Gênero e Diversidade Sexual
Por Anderson Ribeiro
Dia 29 de janeiro é comemorado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data tem o objetivo de promover reflexões sobre a cidadania das pessoas travestis, transexuais (homens e mulheres trans); pessoas transmasculinas e transfemininas (que se reconhecem pelo artigo masculino ou feminino, mas não se afirmam – ainda – homens e mulheres trans) e não-binárias (que não se reconhecem nem como homens nem como mulheres). “Inicialmente, convém ressaltar a importância desses marcos temporais para reforçar nossa visibilidade, exaltar as conquistas, cobrar direitos, reiterar nossa potência de vida e, principalmente, gritar plenos pulmões que existimos o ano todo. Se por um lado estamos conquistando muitas coisas, ocupando espaços até então impensados para nós, ainda há muito a se lutar quando nos damos conta de que moramos no país que segue liderando as estatísticas de mortes de pessoas trans, que habitamos em uma sociedade que nos violenta cotidianamente desde o uso do nome social e do banheiro até a negação de direitos básicos como educação, trabalho, saúde, ir e vir”, enfatizou Manuela Rodrigues Santos, mulher trans, professora de Língua Portuguesa do Campus São Cristóvão.
O dado alarmante foi revelado pelo ٴDzê Assassinatos e Violências contra “Travestis e Transexuais Brasileiras, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), entregue ao ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, em cerimônia realizada na última quinta-feira (26), em Brasília. De acordo com o ٴDzê, o Brasil ocupa, pelo décimo quarto ano consecutivo, o topo do ranking de países que mais matam pessoas trans no mundo, seguido por México e Estados Unidos. “Se pegar o telefone e pesquisar no Google ou qualquer outro mecanismo a palavra 'travesti', oito em cada 10 notícias são sobre violência e esse cenário tem que mudar. Nós somos linhas de frente para sermos vistas, mas também somos linhas de frente para sermos mortas", afirmou a pesquisadora responsável pelo ٴDzê e secretária de Articulação Política da Antra, Bruna Benevides, durante discurso na solenidade.
O ٴDzê mostra que no ano passado foram registrados 131 assassinatos no país, enquanto 20 cometeram suicídio por causa da discriminação e do preconceito. Quase 90% das vítimas tinham de 15 a 40 anos. Entre os estados brasileiros, o que mais registrou assassinatos, em números absolutos, foi Pernambuco: 13 casos; seguido por São Paulo (11), Ceará (11), Minas Gerais (9), Rio de Janeiro (8) e Amazonas (8) e o principal motivo para os assassinatos segue sendo a Transfobia, que é a aversão ou discriminação contra a população trans. “Nós, pessoas trans, só queremos sobreviver e se encaixar na sociedade como qualquer outra pessoa”, enfatizou Sthefany Rocha, mulher trans, palestrante de gênero e sexualidade e aluna do segundo semestre do Curso Técnico de Guia de Turismo do Campus Aracaju. “Infelizmente a transfobia não vai acabar; as pessoas só vão respeitar a gente quando tiver lei severa e também quando o processo de denúncia deixar de ser tão burocrático”, afirmou.
E pela lei a gente é obrigado a ser feliz
Mas a lei já existe. Em junho de 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que homofobia e transfobia é crime imprescritível e inafiançável. Na decisão, o STF estabeleceu uma pena prevista de um a três anos de reclusão, podendo chegar a cinco anos em casos mais graves. Já a opção de inclusão do nome social ocorreu meses antes, em abril do mesmo ano, a partir da implantação do novo modelo da carteira de identidade no Estado de São Paulo, em conformidade com os decretos federais nº 8.727, de 28 de abril de 2016, e nº 9.278, de 5 de fevereiro de 2018. Entretanto, a discriminação contra essas pessoas existe, mas a criminalização ainda não é uma realidade no país.
No ٴDzê Assassinatos e Violências contra “Travestis e Transexuais Brasileiras em 2022, da Antra, mostra que o perfil das vítimas no Brasil é o mesmo dos anos anteriores: mulheres trans e travestis negras e empobrecidas; do total, 76% eram negras e 24% brancas. O levantamento mostra ainda que mulheres trans e travestis têm até 38 vezes mais chance de serem assassinadas em relação aos homens trans e às pessoas não-binárias. De acordo com o documento, 90% das travestis e mulheres trans vivem em situação de prostituição e pelo menos 54% dos assassinatos foram direcionados contra elas, as mais expostas à violência direta e que têm expectativa de vida de 35 anos.
O estudo LGBTIfobia no Brasil: barreiras para o reconhecimento institucional da criminalização publicado em 2021, pesquisa organizada pela All Out e coordenada pelo Instituto Matizes, aponta 34 barreiras para o reconhecimento da criminalização contra essa população. Entre elas está a ausência de padronização dos sistemas estaduais de registro das ocorrências e o não reconhecimento do nome social de travestis e pessoas trans nos procedimentos de denúncia. Uma outra barreira que prova a falta de transparência sobre os dados fornecidos pelo estado é a inexistência dos campos de orientação sexual e identidade de gênero nos sistemas de preenchimento de boletins de ocorrência (BO).
Não recomendado à sociedade
O preconceito também é o principal fator para a evasão escolar das pessoas trans. Uma pesquisa sobre a escolaridade dessas pessoas, realizada pela Antra, em 2018, revelou que cerca de 0,02% estavam na universidade e que 72% não possuíam Ensino Médio e outros 56% não completaram o Ensino Fundamental. “A transfobia estrutural está na base de um processo que desde cedo nos violenta: somos expulsas da família, da escola, do mercado de trabalho, lançadas em condição de precarização total da vida que nos deixa a mercê de uma série de violências e da busca pela sobrevivência”, disse a professora de Língua Portuguesa do Campus São Cristóvão e mulher trans, Manuela Rodrigues.
A escola, como ambiente que educa para a transformação do indivíduo, tem que ser um lugar de acolhimento e que permita o debate para ampliar ideias e contribuir para uma sociedade mais justa e igualitária. Mas é justamente na escola que muitas das violências são agravadas. “O 糵ofereceu acolhimento de certo modo, mas os próprios funcionários e o próprio sistema não cooperaram muito”, disse Serenna, mulher trans, que recentemente – dezembro de 2022 – concluiu o curso de Informática no Campus Itabaiana.
Serenna disse que sofreu diversos constrangimentos e que se não fosse a pandemia, quando as aulas foram de forma remota, não aguentaria concluir o curso. “Nesse último ano, que foi presencial, tive vários constrangimentos, principalmente com o uso de pronomes, por isso acabava sendo difícil solicitar ajuda, acabou que, infelizmente, peguei o costume de ser desrespeitada. Teve ainda o caso de mesmo eu requerendo o nome social, o meu e-mail acadêmico continuou registrado com meu nome ‘morto’, além disso, a lista de chamada tinha vários bugs, onde era trocado o meu nome social pelo nome civil, e imagino que esse último acontecimento foi o que mais pesou no ano letivo”, lembrou.
Deixar de estudar passou a ser para Serenna a única possibilidade possível. “Chegou uma parte do ano de 2022, que eu planejei desistir da escola, mesmo sabendo que pra mulheres como eu, sem diplomas, só resta a prostituição. Fiquei afastada de todas as matérias por não acreditar nesse meio escolar, só consegui me recuperar com as aulas de português, que gostava muito”, contou. “Entrou um professor novo no campus, Adriano Freitas; as aulas dele eram maravilhosas! Ele se empenhava bastante, dava pra ver que gostava do que fazia, foi a única disciplina que continuei gostando depois de tudo, não tive uma falta sequer, um contraste assustador em comparação às outras. Esse professor me incentivou a ler. Depois que li o primeiro livro, fiquei tão instigada pra ler mais, peguei outro, mais outro e outro, quando notei, já tinha esquecido de pensar em desistir. A leitura me incentivou a continuar, esse professor me incentivou. Mas toda a minha aprovação eu devo aos meus colegas que viram minha situação e deixaram eu ‘subir nas costas’ deles”, brincou Serenna.
Esse, infelizmente não é um caso isolado. Um outro caso ocorreu com Sami Peixoto, aluno transmasculino, do curso de Agroecologia do Campus São Cristóvão, disse que apesar de saber que a questão LGBTQIAP+ é novidade na instituição, esse público existe e precisa ser respeitado. “Minha experiência no campus é bastante positiva, mas não quer dizer que não seja atravessada por desrespeitos, falas violentas ou mesmo transfobia. Eu passei por algumas situações bem desconfortáveis dentro da instituição. Acredito que há muito de desinformação, e claro, há também quem não se importa de nos respeitar. O respeito a nós como indivíduos, precisa acontecer. Em geral as pessoas sabem que precisam respeitar, mas se confundem e ignoram que suas falas e comportamentos podem ser violentos para conosco. Eu tento informar as pessoas sobre questões básicas de respeito às nossas vivências e nossos corpos”, pontuou. Para Sami, a instituição não está isolada da sociedade. “Então o que acontece com a gente fora da instituição se repete em algum grau, dentro dela. Às vezes de forma mais velada, porque as pessoas ali têm alguma noção de que algumas atitudes são erradas”, concluiu.
Já Sthefany Rocha, mulher trans, palestrante de gênero e sexualidade e aluna do segundo semestre do Curso Técnico de Guia de Turismo do Campus Aracaju, o preconceito aconteceu por meio de um grupo de WhatsApp, e após uma discussão, uma das colegas começou a agredi-la. “Quando eu vi, logico, comecei a me defender. Foi então que ela passou a ser transfóbica comigo. Fiquei bastante abalada; tive que me consultar com a psicóloga do curso. O clima ficou tão pesado que era eu ou ela. Cheguei a registrar um B.O. Ainda bem que ela desistiu”. Ela ainda conta que por causa dessa e de outras situações, colocou-se à disposição para proferir palestra. “Queria dar uma palestra para o curso sabe, para os três períodos, mas fui na coordenação e mandaram eu ir na psicóloga; a psicóloga me mandou para professora de Psicologia; a professora de Psicologia mandou para o coordenador, ficou nessa e não rolou no primeiro período”, relatou.
Para a professora Manuela Rodrigues, a escola é um lugar hostil às corporalidades dissidentes e como um microcosmo da sociedade também é atravessada pela transfobia estrutural que reproduz cotidianamente. “Não é à toa que os índices de pessoas trans expulsas do ambiente escolar ainda são bastante altos. Segundo o censo trans de 2022, realizado pela RedeTrans, 64,3% foram expulsas da escola por não encontrarem nela acolhida e suporte para continuar os estudos. Essa hostilidade também se reflete na existência dos profissionais trans”, ressaltou a professora.
Valéria Oliveira, coordenadora do Núcleo de Igualdade de Gênero e Diversidade Sexual do 糵(NIGEDS), órgão criado para fomentar políticas internas de combate à transfobia institucional, visibilizar as diferenças e também promover cultura de respeito, disse que há muito o que fazer. “Aqui no Instituto Federal de Sergipe, apesar de ações como um regulamento que garante o uso do nome social e a própria criação de núcleos de direitos humanos, por exemplo, sabemos que ainda há um longo caminho a percorrer. Isto ocorre porque nossa sociedade é alicerçada por um passado patriarcal, repleto de valores discriminatórios, onde as diferenças não são toleradas”, sentenciou.
Farol no mar da incerteza
O Dia Nacional da Visibilidade Trans é uma data para lembrar que todos os dias são dias de luta para se alcançar uma sociedade mais justa e que para que pessoas trans tenham seus direitos assegurados é necessário avançar em diversos aspectos. “Entre eles o respeito e a empatia; se não for assim não vamos avançar. A sociedade nos vê como algo anormal. Somos seres humanos; queremos respeito, sobreviver e viver mais anos, aumentar nossa expectativa de vida que no momento é de 36 anos. Queremos mais empregos e que nos aceite como pessoa e não como gênero”, enfatizou Sthefany Rocha.
Sami Peixoto engrossa o coro e diz que é necessário também haver sensibilização da sociedade. “É necessário e urgente para que os jovens trans possam se assumir e ter o apoio da família, das escolas e universidades. Sem que sejam expulsos do seio familiar ou sofram bullying e transfobia nos espaços de ensino, a ponto de precisarem abandonar os estudos. Queremos ter o direito a saúde garantidos. Seja no âmbito psicológico/mental, como o físico. Com especialistas prontos para lidar com nossas necessidades e particularidades”, reforçou.
No IFS, desde 2018 há um esforço para a implementação de ações voltadas para a inclusão e valorização da diversidade. Foram criados quatro núcleos de defesa dos direitos humanos e o NIGEDS, quer avançar no debate contra a transfobia, uma realidade cruel, que leva ao abandono dos estudos e, consequentemente, pela dificuldade de ingressar no mercado de trabalho formal, leva, muitas vezes, à prostituição.
Para isso quer fortalecer o espaço de escuta, acolhimento e criação de políticas institucionais de combate à transfobia e permanência de estudantes trans; formar e capacitar a comunidade acadêmica; promover atividades alusivas ao tema; além de fortalecer a Rede de Apoio bem como o vínculo com o Movimento Trans de Sergipe. “Não podemos nos cansar de lutar para que os direitos de todas as pessoas sejam garantidos, sobretudo, o respeito”, ressaltou a coordenadora do NIGEDS, Valéria Oliveira.
A professora Manuela disse que o 糵tem se mostrado aberto nesse processo de mudança. “Seja na construção de ferramentas legais que garantam direitos, como o uso do nome social, por exemplo, seja na construção e efetivação de um núcleo que pensa ações em prol das corporalidades dissidentes. É claro que o caminho é longo e há muito o que se fazer. É preciso pensar ações de permanência e êxito desses estudantes na instituição, trazer o debate das cotas para pessoas trans e travestis, a questão do uso do banheiro por identidade de gênero e outras demandas que dizem respeito às mudanças de mentalidade que irão impactar nas mudanças de atitudes”.
Apesar de não conhecer o NIGEDS, Serenna viu como positiva a inciativa da instituição com a criação do núcleo. “Fico bastante feliz que está acontecendo esse andar de passos para a mudança dentro da instituição. Nossa, fico realmente bastante feliz!”, festejou.
Solto a voz nas estradas. Já não posso parar
Como toda experiência é um aprendizado. Todes se perceberam mais fortes e empoderados para lutar por seus direitos. “A população trans precisa ser mapeada. Precisamos ter acesso a políticas públicas que visem mitigar os problemas de todas as violências que sofremos todos os dias. Nós ainda somos excluídos. Começando pela falta de apoio em casa. É um fio, que se puxado, certamente vai nos levar a uma educação deficitária, e consequentemente ao desemprego. Nos empurrando para a marginalidade ou informalidade. A gente vai encontrar resistência. Mas acredito que podemos ajudar pessoas que virão depois de nós, como os que vieram antes com certeza já ajudaram. Para isso a gente precisa se impor e não baixar a guarda”, disse Sami.
Já Serenna ressaltou que “é bom saber que, mesmo com tudo que passamos, tudo vale à pena. Faço questão de lutar pelos meus direitos pensando nas minhas irmãs que estão por trilhar esse mesmo caminho. Farei de tudo para não repetir a história clássica de mina trans que desiste da escola para virar prostituta. Pretendo me formar professora, pretendo cursar letras português/inglês na UFS, estou muito ansiosa por isso aliás, e daí pra frente só anseio ajudar a minha comunidade. Costumo pensar que tudo começa na educação, imagino que podemos quebrar a realidade das ruas na própria escola. Por isso, entregarei meu corpo e alma para transformar esse meio, para que ele deixe de ser um reflexo do mundo lá fora e dessa maneira trazer uma representatividade maior, chamando cada vez mais pessoas lgbtqiap+ para esse ambiente escolar. Não podemos deixar que sejamos ‘suicidados’”, Finalizou.
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